sexta-feira, 24 de junho de 2011


SAECULUM INSAPIENS
O MUNDO MODERNO E O OCASO DO ESPÍRITO

Comecemos pela asserção de uma obviedade: a civilização moderna produziu, como nenhuma outra ao longo da triste e tortuosa história da humanidade, um indiscutível e insofismável incremento das bases mundanas e materiais da vida do homem. De fato, o melhoramento de nossa existência, naquilo que ela tem de mais telúrico – e isso em um nível nunca antes imaginado –, foi o maior logro alcançado pela modernidade em seu irresistível e avassalador evolver histórico. Eis aí um fato realmente inquestionável: em nenhum outro momento da história conheceu o homem uma expansão tão grande e, ao mesmo tempo, tão vertiginosa e assustadora daqueles recursos indispensáveis (a indústria, o comércio, a técnica, as riquezas etc.), sem os quais a consecução de seu bem-estar nas fronteiras deste mundo tornar-se-ia uma empresa impossível. Mas, observando adequadamente as coisas, constata-se que não há aí nada de extraordinário ou propriamente insólito, nada de atópico ou fora do lugar, porquanto, como se sabe, a modernidade rompe com as estruturas tradicionais do passado e emerge como nova formação civilizacional no horizonte da história assumindo justamente como um de seus objetivos primaciais a tarefa de criar uma sociedade de prosperidade e abundância universais, capaz de conduzir o homem para além da penúria de sua condição primitiva e promover a sua emancipação em relação ao jugo vetusto da natureza. Libertar o homem da ancestral submissão às forças naturais e torná-lo mestre e senhor destas mesmas forças, como dizia Descartes, a fim de engendrar um reino de bem-estar e comodidades – tal foi, desde as origens, o móvel que alimentou de forma sistemática e constante a marcha inexorável da modernidade em sua escalada histórica aparentemente irreversível.  
Atentando-se para isso, compreende-se assim porque, no registro da civilização moderna, a ciência tenha perdido seu velho pendor contemplativo, sua altivez aristocrática de práxis anti-utilitária e desinteressada, e tenha assumido mais e mais uma feição prometeica, titânica e ativista, convertendo-se em um instrumento da libido dominandi do homem que, atrelado estreitamente ao universo poiético do trabalho e da técnica, lança-se sobre a Terra como um poderoso e insidioso tentáculo a serviço do projeto humano de controle e subjugação do real. Não se trata mais, dessa forma, no novo ambiente histórico inaugurado pela modernidade, de se postar diante da natureza numa atitude de reverência e respeito, no intuito de contemplar o espetáculo cósmico que nela se realiza, tal como fora o caso no passado, mas de assumir em face da realidade natural uma postura de audácia e mesmo de violência, no intuito de reduzir essa realidade a um gigantesco reservatório de materiais a ser explorado incessantemente pelos interesses e propósitos de nossa vontade. Saber, doravante, como queria F. Bacon, equivale a poder, um poder que, com o concurso indispensável das artes mecânicas, das máquinas, intervém sobre o mundo para transformá-lo e colocá-lo à disposição do homem.
Ora, o que é interessante observar nesse processo histórico é que ele pressupõe não somente o estabelecimento de um conluio essencial e profundo entre técnica e ciência, levando a uma inédita dignificação das artes mecânicas e manuais contra o multissecular preconceito que sobre elas pairava anteriormente, mas também uma radical revolução na representação humana da natureza: com efeito, esta não será mais concebida, no âmbito da racionalidade científica moderna, como uma ordem divina e superior (como um deus visível, theós horatós, como dizia Platão), que se impõe à razão humana como um nómos ou lógos universal ao qual ela deve se subordinar, mas sim como uma inimiga opressiva e brutal, como uma força cega, caótica e hostil ao homem, que deve ser racionalizada e controlada pelo seu entendimento. L. Strauss, em um texto que trata precisamente dos pressupostos teóricos subjacentes à gênese do pensamento político moderno, apreendeu com grande acuidade essa reviravolta introduzida pelo ativismo prometeico da ciência moderna na representação da realidade natural. Nos termos desse autor, para o homem moderno, “conhecer é uma forma de fazer. O entendimento humano prescreve suas leis à natureza. O poder do homem é infinitamente superior ao que se acreditara até então, pois não somente o homem pode transformar um material humano corrompido em material humano não corrompido, ou conquistar o acaso, mas, além disso, toda verdade e toda a significação encontram sua origem no homem: elas não são inerentes a uma ordem cósmica que existiria independentemente da atividade humana. A conquista da natureza implica que a natureza é a inimiga, um caos que deve ser reduzido à ordem; tudo que é bom é devido mais ao trabalho humano do que aos dons da natureza – a natureza fornece apenas um material quase sem valor.”[1]
Como se vê, a modernidade nasce, assim, sob o signo voluntarista de Prometeu e, ambicionando tomar o céu de assalto, a ciência por ela engendrada terá, por conseguinte, um caráter visceralmente utilitário e transformador, visando à edificação do paraíso humano nas fronteiras do saeculum, ou seja, nas fronteiras do tempo mundano ou da vida presente. Tal ideal, sabemos, conhecerá uma vigorosa expressão utópica na Nova Atlândida de Bacon (obra na qual o filósofo britânico descreve uma sociedade perfeita e feliz, inteiramente controlada por um Grande Centro de Pesquisas Científicas, a Casa de Salomão) e receberá sua consagração com o movimento da Ilustração no século XVIII, que, rechaçando de forma virulenta e definitiva qualquer esperança teológica e sobrenatural, fará do progresso da ciência e da técnica – do progresso da Máquina, em suma –, o verdadeiro e único fautor da redenção humana na Terra.  
Pois bem, podemos dizer que o sonho de Bacon e da Ilustração se encontra hoje em grande medida realizado. Vivemos, com efeito, em um mundo totalmente determinado pelo triunfo da racionalidade técnica e científica e que, prosternado aos pés da máquina, usufrui sofregamente de todas as benesses e benefícios produzidos pelo seu êxito histórico. Ora, é um fato indubitável que essas benesses e benefícios constituem, em certo sentido, uma conquista para a humanidade, e ninguém, em verdade, estaria disposto a negá-los, em prol de um páthos revolucionário às avessas que, fundado em um alucinado gesto de recusa, objetivaria reverter o curso da história, remontando a uma condição de penúria e escassez pré-moderna. No entanto, é um procedimento filosófico legítimo e mesmo necessário questionar e problematizar as mazelas do tempo presente, não tanto para propor soluções miraculosas e panaceias utópicas quanto para tornar essas mazelas simplesmente mais claras ou explícitas ao nosso pensamento. A tarefa da filosofia é, antes de tudo, crítica, e é trabalho crítico legítimo submeter os preconceitos e pressupostos impensados do presente a uma reflexão mais aprofundada e consistente. Ora, um elemento da modernidade que merece ser submetido a tal procedimento crítico é justamente aquele que diz respeito à redução, por ela operada, do homem a um ser fundamentalmente econômico (homo oeconomicus), i. e., um ser cuja essência se resolve primordialmente na esfera da sobrevivência e do trabalho, e que se encontra, por isso mesmo, inextricavelmente preso ao horizonte poiético e repetitivo da produção, da técnica e do consumo. Evidentemente, tal redução, que faz do homem um mero animal laborans, encerrado na dimensão econômica e produtiva da poiesis, do operar técnico, tem como seu corolário necessário a deificação da máquina e a promoção das metas mundanas vinculadas à ampliação da riqueza, da prosperidade e do conforto humanos ao patamar de fins absolutos da cultura, em relação aos quais tudo mais deve se subordinar, o que acaba por ocasionar o paradoxo de uma civilização de caráter essencialmente material. Nesse contexto de uma civilização que se constitui como uma organização essencialmente material, em que se dá um radical estreitamento de horizontes e uma mutilação brutal e sem precedentes do homem, todo valor que escapa às premências ordinárias e elementares da produção e do consumo e que pretende transcender a órbita de chumbo da racionalidade econômica e instrumental é marginalizado e incontinenti degradado à condição de elemento acessório e dispensável dentro das estruturas da ordem social dominante. Ou seja, no interior de uma configuração comunitária e civilizacional fundada na idolatria da máquina, do conforto e da riqueza e na absolutização desvairada do trabalho e do consumo (elementos esses entendidos doravante como os vetores precípuos e privilegiados de orientação da vida humana), instaura-se uma brutal axiologia em que todos os valores que não se coadunam com a lógica utilitária e operacional que rege o comportamento poiético do homo oeconomicus são solapados ou atropelados como anomalias descartáveis.
Ora, como viu muito bem Heidegger, com isso é a própria sobrevivência do espírito que se encontra de certo modo comprometida em sua raiz, porquanto, num tal contexto, é o espírito mesmo que, enquanto possibilidade superior do pensamento humano, se vê ameaçado pelo avanço infrene e avassalador de um modelo de racionalidade maquinadora que reconhece apenas o cálculo, o planejamento e a utilidade como seus únicos referenciais legítimos.[2] De fato, o ocaso do espírito, entendido como essa prerrogativa humana de ir além do dado, de transcender as premências materiais e utilitárias que nos assolam no plano da vida ordinária e imediata, e de buscar o que é nobre, livre e inútil, abrindo-se para o mistério ontológico do mundo, no desenvolvimento de uma reflexão independente e autotélica sobre a existência e a totalidade, é, em nossos tempos, um dos sintomas mais lamentáveis da decadência que nos assalta de forma ubíqua e generalizada. Em todas as partes, assiste-se, realmente, a esse trágico desaparecimento do espírito e ao triunfo do “homem normalizado”, ou seja, do animal de rebanho, que ignora tudo aquilo que ultrapassa o horizonte técnico e econômico do trabalho e do consumo (i. e., que ignora tudo o que é livre e nobre) e que, como mero autômato, vive uma vida inteiramente uniformizada e mecanizada, voltada para a reprodução do sistema que o envolve e para a satisfação de seus pequenos prazeres e necessidades. A sinistra conseqüência que resulta desse fenômeno é um inaudito empobrecimento da existência humana em todos os sentidos, cujos traços mais característicos seriam, na formulação de Heidegger, “o obscurecimento do mundo, a fuga dos deuses, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odiosa lançada contra tudo que é livre e criador”.[3]
A questão para a qual essa breve reflexão gostaria de chamar a atenção é, portanto, a questão referente ao paradoxo em que nós encontramos imersos com a irrupção da atual encruzilhada histórica: jamais conhecemos, sem dúvida, tanta prosperidade, conforto e desenvolvimento econômico, graças ao extraordinário progresso desencadeado pela ciência e pelo capitalismo; mas esse desenvolvimento estupendo do ponto de vista técnico e material parece acompanhar-se de uma funesta falência cultural, de um perigoso eclipse do espírito, que, aprisionado nas malhas de uma razão eminentemente poiética e operacional, perde sua liberdade e seu poder reflexivo e criador, convertendo-se em uma mera ferramenta a serviço do desejos e interesses materiais do animal econômico. A identificação desse paradoxo nos leva, assim, a fortiori ao reconhecimento daquela verdade trágica e crucial que subjaz à configuração do éthos de nosso tempo, a saber: a de que o triunfo histórico da racionalidade moderna, responsável por toda nossa atual opulência material, possui, como sua contrapartida sombria, um aspecto problemático e perturbador, na medida em que, conduzindo a sociedade à sua mais extrema indigência espiritual e ao radical estreitamento de seu horizonte cultural, coloca em risco aquilo que há de mais nobre e elevado no homem. Isso significa que a utopia moderna da redenção do homem pelo progresso da ciência e da técnica, com sua consequente entronização da máquina como ens supremum, ao se realizar historicamente, teria, no fim das contas, engendrado o seu oposto, desencadeando uma normalização e uniformização sem precedentes do humano, reduzido doravante à condição de animal laborans, “que vaga pela Terra devastada”, “abandonado à vertigem de suas fabricações”.[4] A indagação derradeira que nos assalta de maneira obsedante diante de tal quadro, e para a qual evidentemente não temos nenhuma resposta pronta, é se essa vitória da maquinação e da razão técnica é realmente definitiva e cabal, tornando o “obscurecimento do mundo” um fatum irremediável, ou se ainda é possível pensar a possibilidade de um ressurgimento do espírito em meio ao deserto e à penúria existenciais do presente, auspiciando a aurora de uma nova época histórica.



[1] L. Strauss, “Thre waves of modernity”. In idem, Political philosophy. New York, 1975, p. 88.
[2] Cf. M. Heidegger, Introdução à metafísica. Trad. de Emanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1978, p. 71-75.
[3] Idem, ibidem, p. 65.
[4] Idem, Essais et conférences. Paris: Gallimard, 1958, p. 83.

2 comentários:

  1. Professor...me emocionei com esse texto, cada palavra é como um brado contra todo esse abismo utilitarista, mecanicista e convencionalista no qual o homem moderno vive...e, se ainda há alguma esperança para nosso mundo, que perdeu-se no decorrer da história da baixeza humana, essa esperança está em pessoas honradas e nobres como o senhor.

    (Renato Libardi BIttencourt- UFPE)

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  2. Renato, obrigado pelas palavras. É bom saber que alguns jovens como vc possuem ainda a capacidade de escapar da caverna da modernidade e vislumbrar um horizonte filosófico superior, onde os verdadeiros valores que deveriam reger a vida humana não foram esmagados pela mão de ferro do Leviatã técnico e instrumental. Um abraço.

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